sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

SÓCRATES MUITO MAIS QUE ÍDOLO, UMA REFERÊNCIA

Demorei, mas o inevitável ocorreu: eu escrever sobre Sócrates...

Nesse momento até quem não suporta futebol sabe da morte do doutor, souberam da sua obra, da seleção de 1982, dos títulos no Corinthians, sua formação em medicina, suas posições, a democracia corinthiana, enfim... Já bastante se falou sobre isso e eu vou falar sobre nada disso, ou melhor sobre tudo isso...

Nascido em Belém, cresceu em Ribeirão Preto, começou sua carreira profissional aos 24 anos, pois mesmo sendo o gênio da bola que todo mundo já sabia, fez questão de concluir o curso de Medicina, logo se destacou no Botafogo e o Corinthians e São Paulo se interessaram por ele. O Corinthians na época um clube relativamente pobre não conseguiria entrar em leilão com o São Paulo, então Vicente Matheus manda um diretor do Corinthians negociar um zagueiro do São Paulo meia boca e enquanto isso, Vicente Matheus acertava os detalhes do contrato de Sócrates e em 1978, Sócrates chega ao time do povo e já no ano seguinte, é campeão paulista. Seu futebol vistoso, imprevisível e inteligente encanta o mundo e joga as Copas de 82 e 86, nas mágicas e derrotadas seleções de Telê, que provaram que vitória não é tudo no futebol, pois falamos ainda delas, mesmo já tendo conquistado três copas antes e duas depois delas, que mostraram ao mundo o "puro futebol arte". Aliás transceder taças, vitórias e o próprio futebol foi a grande marca na carreira de Sócrates... Ele mostrou que há muito mais coisas no futebol entre a bola e a trave do imaginava a nossa vã filosofia (o que dirar do discurso de "futebol ópio do povo" presente até hoje em muitos cegos radicais que ignoram qualquer noção de inconsciente coletivo ao falar de um esporte praticado em todos os países do mundo e que na maioria dele move milhões de apaixonados em torno dessa pelaja e sim, modifica rumos históricos do seu país (pesquisar Dynamo da Polônia, Al-Alhy do Egito, Livorno e Milan na Itália, Barcelona na Espanha entre outros exemplos do futebol influenciando diretamente na história política do país; portanto torna o rito todo tão (ou mais) importante quanto o esporte em si)...

Os corinthianos sempre se orgulharam de sua origem popular, na várzea do Bom Retiro, do time de todos, sem restrições raciais ou de classe, muito usuais no futebol da época, rapidamente se transformando no representante de todos que chegavam aqui em casa, fundado por militantes anarquistas (assim como o Palmeiras também, inclusive alguns são as mesmas pessoas, daí é atribuído o início da histórica rivalidade). O primeiro time campeão da Liga principal reservada a elite econômica, oriundo das classes populares. Capaz de mobilizar uma multidão que varia de artistas, intelectuais, analfabetos, milionários e favelados para causas que iam muito além do futebol, como financiar a reconstrução do partido comunista (em parceria com o arquirrival verde que historicamente está mais para irmãos que não se suportam mas quando precisam, sempre se ajudam...), se posicionar contra o racismo, o primeiro time formado em sistema de cooperativa onde todos ajudavam e ganhavam juntos, construir um estádio em multirão (Lenheiro, anos 1930)... O time que ficou mais de duas décadas sem ganhar e teve um crescimento exponencial da sua torcida (fenômeno similar ao Schälke na Alemanha que não ganha o alemão há 50 anos e ainda possui a maior torcida, justamente pela sua identificação com a classe trabalhadora). Justamente em 1977, quando o Corinthians sagra-se campeão depois de 23 anos e quebra o tabu, Sócrates se destaca no Botafogo de Ribeirão Preto. Esse momento marca a grande consolidação da história sociológica do Corinthians. O Corinthians, consolidado como time do povo, em êxtase pela miração do título inalcansável, com uma torcida organizada com estrutura e ideologia de esquerda (Gaviões da Fiel) casa-se com aquele que será seu líder dentro do campo, fora dele e nos livros de história...


Em 1981 o Brasil estava há 16 anos em uma violenta ditadura militar bancada pela política estadunidense (o mundo estava dividido em dois na época: comunistas, representados pela União Soviética (junção de 17 países comunistas liderados pela Rússia) e capitalistas, esses seguindo os prefeitos dos EUAN. Na época, o eixo sul do mundo estava em extrema pobreza e os países que tivessem qualquer tendência a combater isso, tinham seus exércitos cooptados pela CIA a derrubarem seus comandos e instaurarem ditaduras militares que violentamente combatiam a ameça do comunismo (na época aumentar o salário mínimo já era "comunismo" para essa linha ideológica). O desgate entre a violenta repressão, o fim do milagre econômico (recessão após anos de falso crescimento econômico para alegrar a classe media) e a consequente crise econômica, as relevações da brutalidade da repressão do regime (morte de Herzog por suícidio se "enforcando ajoelhado") geravam um cenário onde começa a se pipocar os pedidos de Democracia e desmilitarização do poder. Começa a campanha pelas eleições diretas no Brasil. Mas o Brasil possuia duas gerações de nascidos sem ouvir falar desses termos...

Já no Corinthians, a falta de organização e planejamento faz o time ficar mal colocado no Campeonato Paulista e ter de disputar a Taça de Prata do campeonato Brasileiro (espécie de segunda divisão). Essa crise faz com que a diretoria fosse demitida e nomes como Adilson Monteiro, sociólogo e Waldemar Perez assumem a direção do Corinthians. Jogadores politizados e inteligentes como Wladimir e Sócrates sugerem uma mudança brutal no sistema de comando do clube e liderando os jogadores e funcionários decidem que TODAS as decisões serão por voto direto e unitário, ou seja, o voto do roupeiro tinha o mesmo valor do voto de Sócrates ou do presidente. A partir dái nasce a famigerada DEMOCRACIA CORINTHIANA... Movimento democrático dentro de um clube de futebol (geralmente um meio muito conservador e até reacionário) numa época onde ninguém sabia o que era democracia na prática. Isso ensinou o país a votar, se posicionar e teve uma importância brutal na formação do país naquela época. O clube, comandado pelo jogador/técnico Zé Maria chega na Taça de Ouro. Nos anos seguintes ganha o bi-campeonato paulista e chega nas semifinais do Brasileiro, sempre decidindo em voto as suas decisões como por exemplo se concentrar ou não, beber ou não antes da partida, esquemas de jogo e de logística e tudo mais... Sócrates se destaca pela comemoração "Pantera Negra" (cabeça baixa e braço estendido que nasce como um protesto à torcida e se torna sua marca e uma explícita referência ao movimento popular estadunidense), pela comunicação com a torcida através de bandanas com mensagens como "Democracia", "Diretas Já", etc. E as faixas que o Corinthians entrava em campo com faixas como "Vencer ou Perder, mas com Democracia". A Gaviões da Fiel adere ao movimento com a faixa na arquibancada "Anistia Geral, Ampla e Irrestrita", consegue apoio também da Torcida Jovem do Santos, afinal isso era muito superior a qualquer questão clubística...

Em 1984 com a ajuda de grupos de rock e da Democracia Corinthiana e evidente devido a conjuntura o país ferve pedindo Eleições Diretas para Presidente, as Diretas Já move todo o país, com milhões de pessoas protestando e Sócrates no comício da Praça da Sé fala sobre suas propostas do exterior (da Fiorentina da Itália) e diz como forma de mobilizar os torcedores corinthianos nessa luta: "Se as Eleições Diretas passarem, eu fico!" Mas não passou... E ele por questão de honra teve de ir para a Itália. O Brasil só teria eleições diretas em 1989... Ele voltou um ano depois a ainda jogou novamente no Corinthians, no Santos e no Flamengo e se aposentou como jogador... A Democracia Corinthiana acaba com a aposentadoria de Zé Maria e Wladimir, a saída de Sócrates e Casagrande e a mudança na presidência corinthiana, voltando o centralizador Vicente Matheus. Durou pouco, mas a semente ficou plantada. O uso do futebol como força-motriz para modificar questões humanas e políticas e ir muito "além de ser ou não ser o primeiro", como diria a música-hino da Democracia Corinthiana composta por Toquinho... Consolidou a posição do Corinthians como time popular na sua essência e não apenas na quantidade de torcedores. Consolidou Sócrates como símbolo de um futebol inteligente e politizado.

Após isso, se especializa em medicina esportiva, tornou-se comentarista de programas esportivos, consolida-se como agitador político e cultural, torna-se compositor e uma referência a todas as pessoas que vem no futebol algo muito maior que uma bola e 22 pessoas chutando-a. Mostrou que futebol é cultura, futebol é arte, futebol é política, futebol é e faz parte da vida... Mostrou que era de uma espiritualidade única ao dizer que não queria luto quando morresse, por isso queria morrer num dia de domingo, quando o Corinthians fosse campeão, isso em 1983. Após 28 anos, seu desejo é realizado e você caro doutor, imortalizado. Hoje morre um ídolo e nasce um mito, de verdade (não como o futebol as vezes costuma banalizar). Uma referência, como diria o hino, "eternamente em nossos corações"....