terça-feira, 25 de outubro de 2011

200 anos de Franz Liszt: um gênio que merece ser reavaliado

Fonte: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,15479692,00.html (clique no título para o link original)

Franz Liszt (1811-1886)
Apreciação da obra do compositor teuto-húngaro é perturbada por seu papel de popstar, peculiaridades biográficas e preconceitos históricos. Bicentenário é bom motivo para se escutar essa música negligenciada.

Num dia de outono, 22 de outubro de 1811, nasceu Franz Liszt num lugarejo chamado Raiding, na época pertencente à Hungria e hoje parte da região austríaca de Burgenland. Àquela altura, ninguém podia sequer sonhar que o franzino bebê se tornaria um dos grandes nomes da música do século 19.


Manuscrito de canção de Schubert adaptada por Liszt

A ascendência do pai de Liszt era alemã, a da mãe, húngara. E, como sempre acontece com as figuras importantes da história, cada uma das nações implicadas insiste em reclamá-lo para si. Assim, não é de espantar que a singela casa onde o músico nasceu ostente duas placas, uma em húngaro, afixada pela Associação de Literatura e Arte de Ödenburg, e outra em alemão, com os dizeres: "O povo alemão dedica esta placa ao mestre alemão".

O pequeno Franz era tudo, menos uma criança-prodígio. Porém seu ambicioso pai, que também praticava música, treinou o compositor na seguinte direção: ele tinha que se tornar um precoce pianista virtuose, custasse o que custasse.

"É fantástico que o pai de Franz Liszt se sentisse como um segundo Leopold Mozart", comenta Noke Wagner, bisneta do compositor e diretora geral do festival de artes Pèlerinages, de Weimar, realizado todos os anos sob a égide lisztiana. "Através de sua carreira, o filho devia compensar todas as frustrações que o próprio pai vivera. Por outro lado, admiro o quanto ele investiu. Embora Franz fosse uma criança frágil, ele cumpriu todas as determinações impostas pelo pai."

Paz em Weimar

Como pianista, Franz Liszt conquistou a Europa. Ao lado do "violinista do diabo", Niccolò Paganini, ele foi o primeiro "popstar", no sentido moderno do termo, com direito a romances escandalosos, excessos alcoólicos e plateias histéricas.

Liszt era um cosmopolita, figura de âmbito europeu. Era também um viajante compulsivo, sempre transitando entre Paris e Roma, Budapeste e Weimar, nunca realmente em casa e sempre pronto a partir. Só descansou de verdade em Weimar: durante os anos em que lá residiu. A cidade do Leste alemão vivenciou sua segunda época áurea, depois de Johann Wolfgang Goethe.

Lá, o virtuose dedicou-se com intensidade crescente à composição. Como disse certa vez, ele queria projetar a lança de sua arte bem longe no futuro. E foi o que fez. No entanto, sua música visionária foi muitas vezes mal entendida, tanto por seus contemporâneos como pela posteridade.


Salão de música dos Liszt em Weimar

Prosperidade não é para os gênios

Dois fatos talvez constituam contribuindo para não se julgar com justiça o mérito de Liszt como compositor: ele ter sido bastante abastado em vida e ter gozado de fama inabalada. Pois os alemães gostam que seus gênios sejam os mais pobres e injustiçados possível.

No ano em que transcorre o bicentenário de seu nascimento (e, pouco antes, os 125 anos de sua morte), ouvem-se com frequência as histórias do Don Juan que se fez ordenar abade, do virtuoso que hipnotizava as massas com sua alucinante execução pianística, mas que no fim terminou solitário e infeliz.

E, mais uma vez, quem sai perdendo é a música lisztiana. Excetuados alguns sucessos de sempre – como o Sonho de amor e as Rapsódias húngaras, o bis virtuosístico La campanella, ou o tema do poema sinfônico Les préludes, instrumentalizado pelos nazistas como jingle para suas notícias de guerra – a obra do compositor Liszt permanece um continente inexplorado.

Um dos fatores determinantes dessa negligência é a crítica musical – sobretudo a alemã – que desprezou suas composições, tachando-as de superficiais, virtuosismo vazio, prestidigitação circense, incapazes de se afirmar ao lado dos verdadeiros e profundos valores da música germânica. Esta encontrava representante digno antes na solidez sinfônica de um Johannes Brahms, ou na mítica wagneriana, afirmavam os críticos – jamais num Liszt, cosmopolita e transgressor de fronteiras artísticas.

Amizade tortuosa


Cosima, filha de Liszt, esposa de Wagner

Costuma-se também ler que teria sido a longa sombra de Wagner, ou o "longo braço de Bayreuth", que impediu o reconhecimento de Liszt como compositor. O que há de verdade nessa afirmação?

O primeiro encontro entre os dois titãs deu-se em 1840 na capital francesa, durante uma recepção no hotel do celebrado pianista. Wagner revela ter-se "entediado seriamente". A conversa sobre música terminou rápido e sem grande efeito, e o compositor alemão não levou consigo "qualquer outra impressão, além da de anestesia".

Oito anos mais tarde, é a vez de Liszt visitar Wagner em Dresden. Ambos discorrem sobre arte, e agora é Wagner que cada vez mais quer falar sobre dinheiro. Liszt se transforma numa de suas fontes financeiras preferidas, ajudando em tudo que pode.

Em 1857, Richard Wagner redige um ensaio sobre os poemas sinfônicos de Liszt, que ele defende da acusação de "falta de forma". E afirma a superioridade do novo gênero diante da sinfonia tradicional, já que a literarização do repertório instrumental é o que abriria os portais para a música do futuro.

"E aqui jaz o segredo e a dificuldade, cuja solução só poderia caber a um homem eleito, altamente talentoso, o qual, além de músico completo, deve ser um poeta atento". Não há dúvida a quem Wagner se referia, declarando assim Liszt seu próprio precursor.


Liszt no ano de sua morte, 1886, retratado por Henry J. Thaddeus

Ouvir para julgar

O colega tão lisonjeado bateu-se ativamente pela aceitação de Wagner. Entre outras iniciativas, em 1850 Liszt regeu a estreia de Lohengrin, na qualidade de mestre de capela da corte de Weimar. Vale lembrar que, na época, Richard Wagner era procurado pela polícia alemã devido a sua participação na Revolução de 1848.

Porém quando o mestre da ópera inicia um relacionamento com Cosima, sua filha casada, a amizade entre os músicos sofre um abalo. Liszt coloca-se do lado do marido, o regente Hans von Bülow. Por fim, em 1867, os dois compositores esclarecem o assunto numa conversa. Três anos depois, estariam reconciliados como genro e sogro.

Por mais que Wagner o irritasse como pessoa, a lealdade de Franz Liszt ao colega compositor permaneceu intocada. Embora, por sua vez, o autor de Tristão e Isolda não tivesse a menor empatia com a árida "música do futuro" da última fase lisztiana. Mas isso tampouco o torna responsável pelo ostracismo a que a posteridade relegou à obra de seu protetor e mecenas.

O melhor método para uma reavaliação dessa música é escutar o Liszt desconhecido. Suas últimas peças para piano, por exemplo, deixam qualquer um de queixo caído.

Autoria: Holger Noltze / Augusto Valente
Revisão: Márcio Pessôa

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