segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O pior dos 7x1, a ética no futebol

Acabou a temporada 2014 de futebol no Brasil. E a sensação de terra arrasada é inevitável até mesmo no que teríamos supostamente de melhor. Mas realmente o que mais incomoda no futebol é essa moral prática medieval que virou nosso futebol. Vou buscar alguns exemplos para ilustrar o que digo.

A palavra ETHOS pode se traduzir como "modos" ou "costumes" e a partir da filosofia grega ETHIKÓS seria numa tradução livre "aquele que possui caráter". Conforme a filosofia evoluiu, de acordo com Deleuze a partir de Spinoza: "Diferencia-se da moral, pois, enquanto esta se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos, a ética, ao contrário, busca fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão".

E aí eu chego em Nietzsche (na verdade numa linha histórica eu volto um pouco) que cria o conceito de super homem (übersmann) que supera seus limites impostos pela moral e assim pautando suas relações pela ética e não pelo imposto por alguém que se auto declarou "bom".

Mas porra, você não ia falar de futebol? Vou, só que vou falar das relações éticas no esporte e de como ficamos "mais sinceros" ao assistir o esporte. Não creio que o esporte crie violência, preconceitos e esquemas escusos, ele desnuda as relações sociais através da paixão extremada. O local onde "você tem o direito" de odiar até a morte um rival. Onde invocar preconceitos enraizados se torna "brincadeira" e onde "roubado é mais gostoso". Ou seja, caso me beneficie vale quase tudo, menos relações homoeróticas na definição de Gil, ex-atacante corinthiano e colorado, entre outros.

A "graça do futebol" nesse caso, para a maioria das pessoas é poder ser no âmbito esportivo, aquilo que a "sociedade" condena mas faz. Vou enumerar oito situações que ocorreram nessa última temporada para ilustrar isso:

1x0 - ao contrário da Copa eu vou começar com o gol de honra que por ironia (ou não) veio da Alemanha. Uma das coisas mais irritantes no futebol, em especial o brasileiro é a quantidade de vezes que jogadores buscam enganar o árbitro para obter vantagem desonesta com um penalti inexistente ou a expulsão de um adversário.

Nesse ano na Bundesliga o jogador Hunt do Werder Bremen avisou um árbitro que sua marcação havia sido equivocada e o erro foi desfeito. Quando conseguiremos ver isso aqui e qual reação teria a torcida do jogador honesto?

1x1 - o futebol como tábua de mandamentos preconceituosos: o machismo. Chegamos em 2014 e o feminino ainda é xingamento no football association. Para a ampla maioria dos torcedores conjungar o adversário ser conjugado no feminino é uma ofensa mortal.

Aqui futebol é tão "para homem" que a ampla maioria dos clubes, organizações e afins tiveram uma ou outra excessão feminina comandando e ainda pior, sequer possuem equipes femininas praticando o esporte. E o sabor mais amargo desse bolo: ainda hoje não temos um calendário organizado de futebol feminino, mesmo com o vice mundial e olimpíco de atletas sem apoio nenhum que ganham lindos discursos e condecorações e já na semana seguinte volta tudo ao normal. Algumas jogam fora do país e outras voltam para serem discriminadas e amadorizadas no Brasil.

2x1 -  o futebol como tábua de mandamentos preconceituosos: a homofobia. Na cabeça dos homens cis que  são a maioria exposta e com voz ativa no nosso futebol existe outro xingamento infalível: "diminuir" o adversário por uma suposta sexualidade não heteronormativa.

Muito comum em clássicos regionais ou ao se referir à equipes gaúchas perpetuasse uma linha de raciocínio que ser homossexual é uma falha de caráter e que deve ser "usada contra o adversário". O preconceito é tão enraizado que funciona, pois o adversário invariavelmente se sente ultrajado caso tenha sua sexualidade "contestada" e invariavelmente repete os preconceitos invertendo os atores.

Por exemplo, mesmo em torcidas de origem popular e inclusiva como Corinthians e Atlético-MG chamam seus rivais locais nas últimas décadas de marias (um trocadilho infame com Máfia, nome de uma organizada rival), bichas ou bambis e para piorar, depois da elitização de suas praças esportivas os novos espectadores se divertem gritando "bicha" a cada tiro de meta rival, imitando o "puto" comum no México.

E para piorar, a ampla maioria das torcidas entendem isso como uma brincadeira jocosa e conforme endurece a homofobia no país o mesmo acontece no futebol (o Corinthians teve um dos principais jogadores da sua história intimidado devido a um selinho em um amigo exposto, teve um manifesto contra a homofobia praticamente ignorado pelo seus adeptos e o São Paulo FC teve um jogador que a ampla maioria da torcida se recusava a cantar o nome dele devido a uma suposta homossexualidade que para piorar teve seu nome vetado por parte da torcida palmeirense com uma faixa onde se lia: "a homofobia veste verde")

3x1 - o futebol como tábua de mandamentos preconceituosos: o racismo. Devido as conquistas do movimento negro, o racismo é um crime tipificado no Brasil e as discussões avançaram bastante na sociedade civil. Diferentemente da homofobia ou do machismo (que só possui tipificação em caso de violência física). Porém, isso também criou aquele racismo velado onde a negritude é condenada, a melanina discriminada mas "tenho amigos negros, logo não sou racista".

Muitas torcidas se usam muito de ofensas racistas contra rivais. O caso recente do Grêmio é o extremo de uma torcida que acha que chamar o rival de macaco é tradição e brincadeira mesmo sabendo que esse apelido tem origem justamente na aceitação de negros do rival. Ironicamente o hino gremista foi composto por Lupicínio Rodrigues. Mas não é só eles não.

Sente-se num arquibancada e veja um rival negro se destacar e ouça as provocações de qualquer torcida. Veja a revista policial na entrada do estádio como fica bem mais minuciosa conforme a cor da pele. Note quantos dirigentes negros possuem o futebol. Note como jogadores são "estimulados" a deixar para lá essas ofensas "jocosas" conforme vimos nos recentes casos de Gil (SCCP), Aranha (SFC) ou Arouca (SFC).

4x1 -  o futebol como tábua de mandamentos preconceituosos: a xenofobia. É difícil separar isso do racismo já que as linhas de "raciocínio" são similares: "são diferentes de mim e não deveriam ocupar o mesmo espaço que eu". Nisso a Copa do Mundo é um festival. É um mês inteiro conversando com gente que não gosta de argentino, alemão, estadunidense e outros devido a serem rivais no esporte e a maioria sem nunca terem chegado perto de conversar com alguém do estrato social odiado.

A elite brasileira, formada pelos europeus colonizadores conhecem bem o poder da xenofobia. Impede as pessoas de perceberem que nossos problemas são iguais independentemente do lado do rio que você nasceu ou das cores da sua camisa. "Dividir e Conquistar" funcionando há mais de 2500 anos.

Para isso fizeram uma forte e irresponsável campanha elegendo os nossos vizinhos a oeste do Rio da Prata como inimigos mortais. Muitas guerras já foram feitas por pessoas por defenderem bandeiras, hinos e cores aristocráticas (como, por exemplo, o verde e amarelo da casa de Orleans e de Bragança) e mataram e geraram dor indiscriminada apenas por nascerem do outro lado de uma fronteira imaginária.

5x1 - Desorganização plena de tudo. O calendário, as praças, as organizadoras, os clubes. Todo mundo que gosta de futebol tem consciência que irá sofrer pelo penalti perdido ou pelo gol tomado no último minuto. Até aí faz parte da graça do esporte.

Mas você ter um campeonato divulgado com dois meses de antecedência, em local a definir, em horário a ser encaixado na programação da emissora detentora dos direitos, geralmente depois que o transporte público acaba, calendário que não respeita as datas Fifa e prejudica justamente os clubes que melhor contrataram, no evento tudo sem informação e com a polícia tratando todo mundo como inimigo potencial, organizando fila xingando e dando borrachada para "organizar".

Campeonatos que podem terminar no tribunal, afinal tem uma corte pavônica que quer aparecer mais que o espetáculo. E tudo isso para jogos defensivos, com muitos erros de passes e poucas chances reais, enfim insuportáveis cobrados a preço de ouro. Arbitragens literalmente amadoras que podem acabar um campeonato por má-fé ou por incompetência e que param o jogo mais que o xará americano que pelos menos para o cronometro e a gente as vezes vendo jogo com apenas metade do tempo com bola rolando. Estamos colhendo os frutos de décadas de desorganização.

6x1 - A reelitização do esporte bretão ou o ataque a festa popular. O football association chegou ao Brasil como um entretenimento das elites europeias aqui fixadas. Mas o esporte foi caindo no gosto popular e foram surgindo times que jogavam nos campos de várzea dos rios dos grandes centros. Os times tentaram segurar seu esporte como um esporte para poucos mas não foi possível.

A população tomou o esporte para si e a profissionalização deu um duro golpe nos ricos que partiram para outros esportes como críquete, hipismo, tênis ou automobilismo que possuem a barreira do preço dos equipamentos. Mas o discurso elitista nunca perdeu força.

A grande mídia esportiva adotou um discurso que o problema do futebol era os pobres mal educados e que a violência do futebol tinha nascido com os torcedores organizados e esses paulatinamente foram (estão sendo) expulsos pela higienização dos estádios. Primeiro, usando-se da desculpa da repressão a violência se proíbe a festa: primeiro o papel higiênico, hoje os sinalizadores, ontem as bandeiras de mastro e hoje até faixa de protesto é proibido em estádio (lembrando que a CBF é a casa das viúvas da ditadura militar). Proíbe de se assistir em pé, acaba-se as gerais e arquibancadas em pról das cadeiras numeradas ou cativas. Também a bebida alcoólica é condenada. Não se pode xingar também e fumar muito menos.

E a cobertura desse bolo indigesto: aumenta-se abusivamente os preços de ingressos, mesmo deixando de ocupar a totalidade do estádio (como o estádio do Corinthians que nunca encheu ou a histórica final entre Atlético x Cruzeiro que deixou grande parte de ingressos sobrando devido a preços que chegavam a R$ 1000,00), mas garante que banguelas escurinhos e apaixonados não atrapalhem seu entretenimento e garantam "belas" imagens a TV. O caso mais emblemático foi do Corinthians, auto declarado, time do povo, que há exatos cem anos ganhou o primeiro campeonato da liga paulista onde um time operário e popular saia campeão. Hoje possui um estádio com acabamento em mármore e acionadores automáticos de banheiro como desculpa para cobrar o tíquete mais caro do país e expulsar o povão do rito de amor ao time do povo.

Tornaram o jogo chato e agora até torcer ficou chato. Devolveram o esporte a sua origem burguesa e aristocrática e acabaram com a mais bonita das festas populares que nossa cultura criou.

7x1 - Falando sobre a ética em si. E a tal da alteridade aparentemente impossível na nossa sociedade e, principalmente, no futebol. Esse sim, o fator ético em si, o mais preocupante a meu ver. Porque esse ano o CR Flamengo ganhou do rival e seu goleiro então, Felipe, declarou que "roubado é mais gostoso", frase comum no meio esportivo e já denuncia a relação entre a falta de ética e alteridade do meio.

Ainda dentro desse item, quase todo técnico no Brasil tem o hábito de desviar a atenção de seus erros para erros de arbitragem e programas esportivos se dedicam muito mais a "achar lances polêmicos" do que discutir o jogo em si. Fora que aqui quase todos os jogadores foram ensinados que se sentirem um toque na área e para se jogar e dar um coice para trás pois para quem vê de trás (quase sempre a posição do árbitro principal) parece que ele tomou uma rasteira. Simular faltas para expulsar rivais. Até desligar a iluminação para esfriar o jogo.

Aí entra a ética e a alteridade em si. Pois todos esses lances são comemorados quando nos favorecem e geram revoltas quando nos prejudicam. Porque se é a meu favor "roubado é mais gostoso" e se é contra é "uma vergonha esse futebol". Ou seja, se por no lugar do outro, jamais. Defender uma postura única de atuação ética menos ainda. Jogadores batem penaltis roubados e comemoram e na semana seguinte saem chorando e revoltados por acontecerem o mesmo com eles.

Ou seja, o roubo só é ruim se a vítima formos nós, se formos o beneficiado, tudo bem até é "mais gostoso". Chega-se ao extremo de torcedores verem dois lances idênticos e considerarem a seu favor, verdadeiro e contra, falso. Cito dois exemplos do derby paulistano. O Palmeiras interrompeu uma fila de quase 18 anos ao se associar com a Parmalat, famosa multi nacional italiana em especial pelo seu envolvimento com a máfia. Muitas conquistas foram contestadas pelos corinthianos devido a isso. Isso não impediu que muitos desses mesmos contestadores não vissem problema algum em se associar com a máfia russa através da MSI (dinheiro roubado na Rússia durante a transição da URSS que é "considerado limpo na Inglaterra", inimiga diplomática do Kremlim. Outro exemplo foram as comemorações dos centenários dessas equipes.

Em 2010 parte da torcida alviverde foi ao jogo do seu time contra o Fluminense torcer contra o próprio time para não vê-lo ganhar um título no ano celebrado, inclusive alguns chegaram a ameaçar a integridade física dos jogadores caso eles descumprissem a ordem de perder. Ironicamente, o alviverde esse ano teve um centenário desastroso onde ao invés de disputar títulos, ficou no final da tabela e disputou para não cair, não fazendo a parte dele foi salvo pelos outros resultados, inclusive de um rival (Santos FC) que se tivesse aplicado o mesmo raciocínio, hoje teríamos o centenário clube de origem colonial italiana mais uma vez rebaixado. Outro exemplo nesse sentido é a reeleição de Eurico Miranda no Vasco. Pimenta quando nos olhos alheios, sempre é refresco, por aqui.

Acréscimos Regulamentares: Resumindo tudo isso. Peguei o futebol como exemplo pois como já disse, ele é um sincero e declarado laboratório do que acontece na vida fora dos estádios e grêmios de torcedores. Aproveitemos essa terra arrasada de campos vazios, de clubes endividados, torcidas em deformação, campos higienizados sem festa popular, futebol bem remunerado sem nenhum retorno onde cabeças de bagre ganham salários de seis dígitos e toda essa humilhação que é torcer no Brasil eu sugiro que refletirmos sobre nossa atuação na vida, na sociedade e por consequência, no futebol.

Sugiro algo tão (paradoxalmente) simples e complexo que resolveria todos os problemas acima citados: SE COLOCAR NO LUGAR DO OUTRO E NÃO FAZER AO OUTRO O QUE VOCÊ NÃO GOSTARIA QUE FIZESSEM COM VOCÊ.


P.S.: Escrevi esse artigo analisando um pouco da relação ética e futebol. citei exemplos de vários clubes grandes no brasil, mas acabei citando mais exemplos corinthianos por ser a realidade que vivo mais diretamente envolvido. Mas (infelizmente) esses exemplos se aplicam a qualquer meio, estrato ou organização social que estamos inseridos, independentemente na maioria das vezes, do da ideologia.


FONTES: http://www.espacoetica.com.br/oqueeetica
Gilles Deleuze, Espinosa: Filosofia Prática, p.23-35. Editora Escuta
http://blogdefilosofiadowolgrand.blogspot.com.br/2011/05/o-pensamento-etico-de-nietzsche-ou.html
http://esportes.opovo.com.br/app/esportes/futebol/internacional/2014/03/08/noticiasinternacionais,2727894/show-de-fair-play-jogador-confessa-penalti-cavado-e-faz-arbitro-voltar-atras.shtml
http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/2007/11/filosofia-moral-tica-e-moral.html

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