quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O paradoxo da vida e os porcos do Rodoanel


 O paradoxo da vida e os porcos do Rodoanel




Ontem ocorreu um acidente de caminhão e ele tombou no pedágio em Osasco à cerca de dois quilômetros do destino. E como o caminhão era grande, a remoção dele demorou horas.

A descrição acima seria uma nota de uma rádio de trânsito se não fosse um detalhe. A carga carregada era de seres vivos e conscientes. E que isso não foi o suficiente para que a operação se preocupasse com a "carga".

Quem me conhece há algum sabe quanto eu gostava de comer carne. Porém, o fator ético começou a me pesar e a cerca de três anos decidi "maneirar" o consumo dela e em pouco tempo, quase que inconscientemente eu aboli o hábito.  Hoje não a vejo mais como alimento e até o cheiro me incomoda.

Me incomodava (e ainda incomoda) o fato de que esse hábito significava confinar, envenenar,  estuprar e engordar um ser que tem plena consciência de sua vida. Condenar a escravidão espécies inteiras de animais porque eles têm pedaços saborosos e nosso rito romano exige sacrifício animal para obter prazer. E para isso se desmata florestas inteiras para plantação de soja geneticamente modificadas e a poluição dos lençóis freáticos e a morte dessas mesmas terras ou a destruição da camada de ozônio.

Isso é um preço muito caro e antiético para um pedaço de bacon ou de picanha escravizar espécies inteiras de animais em detrimento de outras. Moral essa aplicada entre humanos também (vide,  só para ficar num exemplo a polícia carioca proibindo negros pobres de frequentar as paradisíacas praias da zona sul. Ou seja, nada é mais presente na humanidade do que eleger um grupo e destratar outro, infelizmente).

Se fosse na Coreia, esse caminhão seria de cachorros e provavelmente a maioria absoluta das pessoas aqui estariam chocadas. Nossa ética parte da banalização do mal da Arendt. Absolutamente normal para algumas pessoas um trem passar sobre o corpo de um pobre que “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, a polícia matar pobres para vingar a morte de colegas, Israel impedir comida e remédios de entrarem na Palestina ou alguém espancar seu filho até a morte por ele ser “afeminado”, entre muitos outros exemplos onde um grupo é desumanizado e logo é justificável “excluí-los” da sua sociedade “ideal”.

Fora da espécie ainda pensamos igual. É absolutamente normal uma pessoa ter um cachorro tratado como um semideus em casa enquanto almoça seu “indispensável” bacon. Ter tatuagens de gatos ou tigres e comer seu belo bife de picanha. E ainda pior, se incomodar com o vizinho que maltrata seu “pet” e ignorar bichos confinados, torturados, engordados à força, estuprados e ainda matar todo o ecossistema ao redor para que nosso “topo” da cadeia alimentar seja servido em saquinhos herméticos no supermercado mais próximo.

No caso dos porcos do Rodoanel o paradoxo maior é que eles nasceram de inseminação artificial (leia-se que alguém enfiou a mão na boceta da mãe dele e colocou o sêmen no óvulo dela), foi confinado, impedido de andar livremente, engordado (leia-se nutrido de forma exagerada), foi drogado com antibióticos e hormônios que ele não precisaria em vida afinal não estava doente, só de forma preventiva, cresceu preso e foi confinado num caminhão que trafegou horas com mais de 100 animais de 300 ou 400Kg amontoados e a cerca de duas horas de chegar na sua câmara de morte (abatedouro) numa manobra errada tombou.

Então durante metade de um dia foram tratados como carga dispensável e tentaram desvirar o caminhão com ele dentro (imagine que seu ônibus capote e a polícia rodoviária ao invés de te socorrer passa a tentar remover o mesmo com você dentro, vivo e ferido e derruba o ônibus em diversas tentativas, matando e ferindo outras pessoas no ônibus e você presenciando aquilo no escuro, ferido, com sede, fome e óbvio, muito medo), numa tortura similar a um crime de guerra. Mas essa tortura foi o que os salvou, dando visibilidade a essa rotina, já que nesse tempo eles foram resgatados e transferidos para um santuário de animais.

Ou seja, os piores momentos desses animais em vida foram indiretamente sua salvação. Já que se isso não tivesse acontecido, hoje seu cadáver seria uma feijoada ou um toucinho. Estranho paradoxo, mas ele foi quem salvou essas vidas e que hoje motiva as discussões e esse artigo. Que esse absurdo desastre seja o despertar de muitos para que absolutamente nada surge em nossas mesas, mãos ou casas, nem as próprias casas e fingir que não vê não torna a coisa menos horrível e não nos isenta da responsabilidade de que tudo o que fazemos está interligado e tem consequências, até seu lanche.

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